domingo, 2 de agosto de 2009

HOMENAGEM AOS DIAS DOS PAIS (O MEU PAI)

Meu pai era bravo comigo quando eu era pequena, mas ia ajeitar meu cobertor nas noites frias enquanto eu fingia dormir. Meu pai se irritava com o barulho que eu e meu irmão fazíamos na piscina, mas um dia nos comprou uma bóia imensa de jacaré. Meu pai era rígido, mas ria disfarçadamente quando eu soltava um arroto ou um palavrão. Meu pai tinha o sonho de que eu seguisse sua profissão, pois era apaixonado por sua carreira jurídica, mas me respeitou e me apoiou quando um dia o encarei nos olhos e disse que não amava o Direito e resolvi mudar totalmente de área. Meu pai não era de grandes conversas de madrugada, perguntando como estava o bar com meus amigos, mas esteve ao meu lado nos piores momentos da minha vida. Meu pai era um pouco ausente por trabalhar fora da cidade, mas me trazia livros maravilhosos todos os finais de semana que vinha para casa. Meu pai detestava telefone, mas nos ligava todos os dias. Meu pai era um pensador nato, filósofo da vida, sonhador, mas prático o bastante para cuidar dos problemas de todos ao redor. Meu pai era orgulhoso e altivo, mas de uma humanidade que nunca mais vi em ninguém. Meu pai era um pouco melancólico, mas às vezes, em certos momentos, tinha uma alegria quase infantil. Meu pai era urbano, mas amava a natureza e a pesca. Meu pai era severo, mas tinha um amor absoluto ao próximo. Meu pai era realizado profissionalmente, trabalhava por amor, mas totalmente desapegado da matéria. Meu pai era de uma inteligência nobre, mas tinha o coração humilde. Meu pai era um homem extremamente culto, mas cultivava uma simplicidade imensa dentro de si. Meu pai era convencional, mas me deu de presente uma viagem para o Peru, sozinha, de mochila nas costas. Meu pai era tradicional, mas aplaudiu quando resolvi ser budista por muito tempo e me deu um lindo oratório de presente. Meu pai era um homem um tanto seco, mas tinha um amor absoluto pela família. Meu pai não tinha o hábito de me abraçar, mas às vezes me deixava bilhetes com declarações de amor sobre a cama. Meu pai era protetor, mas me apoiou quando decidi morar sozinha. Meu pai sempre foi reservado para falar de seus sentimentos, mas tentava sem cessar transpor essa barreira de “fortaleza”. Meu pai me incentivou a escrever. A pensar. A contestar. A ter coragem. A assumir meus erros. A ser eu mesma. A ser nobre. A ser honesta. A ter caráter. A ser independente. A brigar quando necessário, a levantar a cabeça depois da queda. A ser um pouco melancólica, a falar palavrão, a gostar de flores, de cachorros, de móveis antigos, de fotos amareladas de família. Do meu pai herdei um gênio forte, uma personalidade um pouco rebelde, uma enxaqueca terrível, a indignação com muitas coisas, o desprezo por outras, uma certa inflexibilidade, a tendência a sonhar, a sensibilidade, o orgulho, o amor pelas palavras (meu pai escrevia muito bem, mas não mostrava para ninguém. Encontrei uns textos depois da sua morte), a transparência no contentamento e no descontentamento, a resistência ao álcool (fígado de pirata), ouvir Oswaldo Montenegro, Chico Buarque e Vinícius de Moraes, a necessidade de ficar sozinha às vezes, a paixão por tortas de morango, o amor por crianças, o pânico de lugares muito cheios, e milhões de outras tantas coisas que não me vêm à cabeça nesse momento. No dia nove de abril faz um ano que me pai morreu. Penso nele todos os dias. Tem dias que choro. Noutros apenas lembro. De coisas ruins, de coisas boas, de algumas conversas, de coisas do cotidiano. Da camisa pólo listrada que ele mais gostava, dele sentado à mesa da sala assistindo televisão, do seu delicioso cheiro de perfume, do som da sua voz, da sua mão (a mão de homem mais bonita que já vi), dos seus olhos redondos, expressivos, onde ele não conseguia esconder nada. É uma saudade. Um vazio. Não tê-lo mais. Saudades até das brigas, das diferenças, dos desacertos. É, brigávamos muito porque sempre fomos muito parecidos. Amor e ódio. Mas o amor sempre superava e prevalecia. Meu pai era um homem contraditório, com inúmeras qualidades e defeitos, inúmeros acertos e falhas, mas era todo ele só amor. Meu pai era um homem singular, e quando me olho no espelho vejo nitidamente uma parte dele refletida em mim. E isso vai muito além da presença física. Da vida ou da morte.

Alessandra Mascarenhas,Sorocaba, SP.

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